Texto publicado no site oficial do ex-enghaw CMaltz. E gentilmente cedido para o blog enghawonline.
Quando escrevi a crônica da “Rivotrilândia”, não poderia imaginar que em tão pouco tempo o assunto estaria tão “up”, por causa da morte do Michael Jackson. Aliás, nem sabia que a Rivotrilândia ficava tão próxima da “nunca-lândia” (Neverland), a terra do nunca, onde nunca se cresce, e nunca se sofre. Que co-incidência! Mas, sinto desapontar os ansiosos por novidades escandalosas, não é esse, o meu assunto de hoje…
Chegando em casa, um dia desses, deparei com algo que me chamou a atenção: uma “Kombi”. Tenho um vizinho que gosta de esportes radicais, tipo “bike”, essas coisas, e ele comprou uma Kombi pra levar as suas tralhas para os locais onde pratica o seu esporte.
O Kombão está lindão. Verde e branco.Verde-limão e branco. Sim, bi-color, que nem aqueles sapatos do Fred Astaire e do Frank Sinatra. Verde e branco, sim.
Mas o mais incrível não era a Kombi em si, um veículo dos anos setenta do século passado. O que mais me impressionou foi o contraste entre ela, e os outros carros que estavam estacionados junto ao meio fio da calçada.
Vectras, Hondas-Fits, Accords, Kas, Fiestas, Eco-não–sei-o-quê, Pajeros, Caminhotes variadas, Palios, Siennas, Gols, Picassos, C3s, carrões importados que eu nem sei o nome… Enfim…Todos ali paradinhos e pasmem: todos iguais. Todos com a mesma dianteira. Os mesmos faróis, a mesma cara. Parecia que haviam saído todos da prancheta do mesmo designer. E o mais incrível: todos cinza – metálico.
Fiquei ali olhando a cena: a Kombi heroicamente defendendo a sua diferença no meio daqueles seres indiscriminados, aquela massa cinzenta disforme. Um baluarte da individualidade: uma Kombi! Um carro que na sua época, foi desenhado apenas para ser útil e nada mais. Um utilitário! E ali, naquele deserto de mesmice, era um monumento ao que é único, ao que tem personalidade, graça, ao que tem alma. Ao indivíduo.
Talvez você possa achar que eu estou exagerando, mas veja os carros da época da Kombi: Fusca, Corcel I, Chevette, Caravan, Dodge Dart, Galaxy… Se você não viveu esta época e não conhece esses dinossauros, procure na Internet. Você vai ver… Cada um deles é completamente diferente do outro. Cada um é uma individualidade. Um desenho com uma personalidade própria, um gosto diferente, um estilo. É interessante, hoje temos muito mais modelos, recursos tecnológicos e opções, mas muito menos variedade.
E as cores? Lembro bem e penso que jamais esquecerei as cores das duas “Variants” que meu o pai teve: amarelo-ôcre e azul-calcinha. Duas cores inimagináveis atualmente. Quem compraria um Citröen, um Peugeot, ou um chiquésimo Renault azul-calcinha? A Variant amarela veio na mesma época em que nos associamos ao Camping Club. Ela era da mesma cor da barraca que meu pai comprou: Variant cor-de-barraca. Você já viu um “Pallas”ou um”Megane” cor-de-barraca?
Por que tantas pessoas estão comprando carros da mesma cor, e mais ainda uma cor que é, na verdade, uma ausência de cor? Parodiando uma velha música dos “Secos & Molhados”: que fim levaram todas as cores?
É claro que alguém poderia argumentar que o cinza metálico é mais prático, mais barato para fazer reparos, que tem um valor maior de revenda no mercado, etc, etc. Penso que esses argumentos pragmático-econômicos fazem todo o sentido para pessoas que, com muito sacrifício e em muitas parcelas, compram os seus carrinhos de dez, quinze, vinte mil reais. Mas no caso de pessoas que têm cento e cinqüenta, duzentos mil reais para gastar numa coisa sobre rodas, o motivo será esse mesmo?
Li recentemente um trecho falando sobre a globalização, em um artigo sobre moda, numa revista de Psicologia que talvez tenha a ver com essa discussão (HERBERT, Wray in Mente & Cérebro, ano XVI, nº 197, pg. 23):
Se todo mundo acaba sabendo exatamente a mesma coisa, com poucas variações, passamos a habitar um universo de pessoas que pensam de forma muito similar – e esse grupo homogêneo acaba agindo como um único explorador, em vez de criar uma federação de idéias. O risco maior é que as pessoas se acostumem a se espremer no vagão das coisas bem conhecidas, mesmo quando essa situação não as leva muito adiante. Isso acontece na política, no jornalismo, em relação ao gosto musical e, sim, no âmbito da moda.
“O risco maior é que as pessoas se acostumem a se espremer no vagão das coisas bem conhecidas, mesmo que essa situação não as leve muito adiante.” - Ah, o que será mesmo que isso quer dizer? Veja este anúncio que eu li recentemente em um site de rock:
VOCALISTA PROCURA BANDA:
Procuro banda que queira fazer cover de rock nacional e internacional (pop). Só cover, nada de compor musicas próprias.
Cover, para quem não sabe, é musica que já existe, música alheia. O que levaria um garoto que resolve ser artista, cantor de rock, a querer cantar SÓ música dos outros, música pronta, música já conhecida?
Como já fui integrante de uma banda de rock, que foi grande nos anos 80 e 90, tenho sempre muito contato com os garotos, e eles me dizem que está cada vez mais difícil arrumar lugar para tocar, a não ser que se faça “cover”. - As pessoas não estão interessadas em ouvir música própria, eles dizem.
Não tenho nada contra o cover. Foi nos bares da vida tocando cover, que muita gente boa pôs o pé na profissão. Este não foi o meu caso, em minha banda a “fissura” sempre foi fazer música própria, aquela era uma época diferente. A juventude tinha sonhos diferentes… tinha sonhos… ainda… Hoje é diferente… O computador sonha por nós… mas… SÓ cover?
Legião, Paralamas, Titãs, Engenheiros, Lobão, Lulu, Barão… Cada um tinha um jeito diferente, próprio. Mesmo quem não era fã sabia quem era quem. E se fazia muito pouco cover. A gente mesmo, fez apenas dois, em dez anos de carreira e dez discos lançados. Nunca ouvi falar de show de banda cover naquela época.
O que a enxurrada de carros cinza-metálicos e bandas-cover está nos revelando?
O fenômeno não está aparecendo apenas nos carros e nas bandas de rock. Caminhe por um condomínio de luxo em São Paulo, Rio, Cuiabá, Curitiba, Salvador, Brasília, e você terá muita dificuldade de saber onde está. A mesma impressão dos carros: todas as casas, em lugares tão diferentes foram desenhadas pelo mesmo arquiteto? Será algum desses programas de computador, desses que mostram imediatamente em real-time-on-line, onde está a média da média do gosto médio, que está desenhando as casas?
As casas, os carros, as roupas, as músicas, os artistas, os rostos das mulheres, seus corpos, independente delas terem 16 ou 66 anos, os políticos, as políticas públicas, nossas relações sexuais, que agora são “performances sexuais”, nossas relações pessoais…
Aonde isto vai nos levar?
É interessante, há uma boa questão aqui para os nossos filósofos e psicólogos sociais, que eles certamente poderiam estar estudando, se não estivessem tão ocupados lendo dados e discutindo se determinadas metodologias são científicas ou não: por que, em uma época que dispomos de tanta liberdade (pelo menos em relação a outras épocas), usamos tão pouco a nossa liberdade?
Por que falamos tanto de liberdade, e usamos tão pouco a nossa liberdade?
O que essa palavra quer dizer hoje?
Será que nossa liberdade foi reduzida á libertinagem? Assim como o amor foi reduzido a sexo, e Deus está num pedaço de cérebro?
Como estarão as coisas daqui á dez anos?
Será que esses fatos têm alguma coisa a ver com a previsão da OMS (Organização Mundial de Saúde) de que em 2020, teremos 35% da população do planeta Terra sofrendo de depressão, e outros 35% escravizados por alguma forma severa de adição?
Estas são boas perguntas. Mas sei que poucos vão se interessar. Estarão todos ocupados com outras muito mais importantes: quantas pessoas foram ao funeral de Michael Jackson? Quantos discos ele vendeu? Quantas pessoas foram aos seus shows? Quanto dinheiro ganhou? Quanto pagou aos seus advogados? Seus maiores hits, escândalos…etc… enfim… Oh brave new world! Oh brave new world!
Texto publicado no site oficial do ex-enghaw CMaltz. E gentilmente cedido para o blog enghawonline.